Entrevista a Carlão, músico
“Para mim, as palavras são tão importantes quanto a música”
Carlão, músico
Cresceu a brincar na rua e da rua fez inspiração. Para falar de amor ou de outra coisa qualquer. Por lá, no meio da vida que acontece sem querer, ganhou o nome com que subiu ao palco: Carlão. Com o sorriso nos olhos e uma voz que deixa calor no que diz, os quarenta trouxeram calma, mas não levaram o jeito de “miúdo” feliz por fazer música metida em palavras. Há tempo neste dia de outono que vai passando no meio da cidade. No banco de jardim, os silêncios vão pontuando a conversa e deixando o pensamento respirar. As perguntas, entretanto, voaram com o vento, à boleia de um pedaço de papel. Improvisa-se como se a câmara não estivesse ali. E não se temem esses pedaços de vazio, cheios de tanta coisa. Fazem parte. Como a folha em branco à espera da rima certeira. Fala-se sobre o que se foi e do que se quer ser. A arte que mais ama está sempre lá. Olha-se para o país que canta e sente. Emociona. Por isso, embora não haja planos a longo prazo, há vontade. Há vida. Como naquele jardim. E, enquanto assim for, as palavras não se esgotarão e a música continuará a tocar.
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Primeira grande questão que se impõe: Carlos ou Carlão?
Poucas pessoas me chamam Carlos, apenas a família me trata por Carlos. Toda a gente me chama Carlão. Mas são os dois válidos. Carlão é o meu nome de rua. Foi o nome que os meus amigos me começaram a chamar quando vínhamos para a rua brincar, algo que os putos já não fazem hoje em dia. Ganhei esse nome e assim ficou.
O que há em demasia nos dias que correm?
Há um culto da imagem demasiado forte. Sempre tivemos esse lado, mas estamos a atingir um píncaro no que toca a isso. Isto das redes sociais e a preocupação das pessoas com as aparências e com a imagem são aspetos da atualidade que estão a atingir níveis muito exagerados. Isso, sem dúvida, está em demasia.
E o que é tão difícil de encontrar quanto uma agulha no palheiro?
É difícil de reter, porque há tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo… Música, cinema, tudo. A oferta é tanta que se torna difícil conseguirmos reter alguma coisa. Parece que tudo é cada vez mais descartável, de consumo rápido. Pastilha elástica. Chiclete, mastiga e deita fora, como diziam os Táxi. São fases. Há um lado meu que começa a envelhecer e a refletir mais sobre estas coisas. Para os miúdos é completamente diferente. Acho que guardamos de menos. Costumo sempre falar de uma situação que me aconteceu em 2015. Lancei o meu álbum “Quarenta” e, passados alguns dias desde o lançamento, fiz um showcase na FNAC e houve um miúdo que, no final, me perguntou: “Então e coisas novas?”. O disco tinha acabado de sair há dois dias... Mas é isto.
As palavras têm outro peso na música que faz?
Como se as palavras fossem a própria música… Para mim, as palavras são tão importantes quanto a música. A grande maioria da música que consumo e que gosto de ouvir vem primeiro dessa atração pelas letras e só depois surge a melodia. As letras têm de ter substância, um tema com que me identifique ou que me choque. Gosto de palavras que despertam emoções.
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A língua portuguesa é tramada ou não há matéria-prima melhor para se criar?
As duas coisas. Felizmente, estamos cada vez mais à vontade com a língua portuguesa. Lembro-me de estar com o Manel Cruz, que entra no novo disco, e que me falava da primeira vez que ouviu Da Weasel. Ele dizia que, naquela altura, não era fixe fazer coisas em português. E é verdade. Também por isso é que os Ornatos Violeta foram tão importantes para mim. Primeiro, porque demonstraram que se podia fazer bom rock e, depois, porque era em português. Para mim, ouvir uma música em português é completamente diferente. Nem sempre foi assim, mas tornou-se a partir do momento em que fiz o meu primeiro disco em português. A partir daí, não consegui voltar a escrever sem ser em português.
Podemos dizer que foi uma das coisas que mudou no mercado português? Antigamente, fugíamos do risco de escrever e cantar em português e, agora, enfrentamos esse risco com prazer?
Acho que sim. As coisas foram mudando. Primeiro, foram os anos durante os quais ficámos fechados ao exterior por causa da ditadura. Só as pessoas mais ricas é que tinham acesso a música que vinha de fora. Depois, quando nos abrimos ao mundo, foi o consumo exagerado de música estrangeira. E, naquela altura, não havia assim tantas bandas ou tantos músicos diferentes a cantar em português. Agora, acho que as coisas estão melhores, mas sempre tivemos aquele complexo de que o que vinha de fora era melhor. Isso tem mudado. Agora tens portugueses famosos espalhados pelo mundo. Seja pela música, pelo futebol, etc. Isto tudo contribui para que o português seja mais normal. Além disso, considero muito importante este esforço para estreitar a ligação com outros países de língua oficial portuguesa, tem permitido que o português se liberte.
Em que se pensa quando a folha está em branco? Nada vale mesmo mais do que 1000 palavras?
Assumo que, infelizmente, cada vez tenho menos tempo para ler. Tenho procurado obrigar-me a isso mesmo. Eu consigo viajar muito mais lendo do que vendo um filme. E adoro cinema. Mas a verdade é que, quando me embrenho num livro, consigo imaginar muito mais. Eu já disse isto algumas vezes e foi uma coisa que o meu irmão me disse: podes escrever sobre o que quiseres, desde que o faças bem. Eu acredito mesmo nisto. Tornou-se uma máxima para mim. Quase tudo à tua volta é matéria para a escrita. Se olhares à tua volta, tens imenso sobre o que escrever. Para mim, a escrita acaba por me servir como elemento terapêutico. Tenho questões minhas sobre as quais não é tão fácil falar e eu desabafo através da escrita. Há pessoas que pensam que sou um romântico, mas, na verdade, não sou. Se calhar há coisas que não digo à minha mulher tantas vezes quanto devia. E, para mim, escrever uma canção facilita esse diálogo, essa compreensão. Mas não, não há receitas, nem comprimidos mágicos.
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E fazer música é, cada vez mais, negar rótulos e misturar estilos? E fazê-lo em Portugal… É aceitar ou negar o risco?
Para mim, esse foi sempre o caminho. Nós vivemos numa cidade que fervilha com tantas culturas diferentes. Eu sempre senti isso desde muito pequeno, começando logo na mistura de sangues que eu tenho. E, depois, isso influencia o meu caminho musical e cultural. Sempre gostei de misturar estilos. Para mim, é isso que funciona e acho que estamos numa boa altura para o fazer. Lembro-me que, na minha adolescência, era difícil alguém gostar de metal e de rap. As coisas estavam muito arrumadas. Hoje em dia, gostar de várias coisas é normal. Acho que, independentemente daquilo que faças, tens é de ser genuíno e de sentir.
O último álbum chama-se “Entretenimento?” e, muitas vezes, falamos de música como entretenimento… Poderemos dizer que o entretenimento é algo bom que tornámos mau? Ou vice-versa?
É tudo isso e o seu contrário. Eu acho que é algo bom, mas tudo o que seja em demasia perde interesse. Estamos a viver uma fase em que tudo é entretenimento e em que tudo é vendido como tal. Mistura-se tudo e causam-me estranheza certas coisas que vou vendo na sociedade, na política, etc. Parece que só há essa preocupação: vender tudo como entretenimento, mas no mau sentido, ou seja, como sendo pão e circo para entreter o povo. É esse lado que eu abomino. Agora, eu também faço parte desse entretenimento e entro nesse jogo de vez em quando. Essa é uma das questões que abordo no disco novo. Aliás, este nosso palco deve ser usado para fazer pensar. As minhas letras não são nada leves. E quando meto o ponto de interrogação no álbum é exatamente por isso. Para questionar e fazer pensar.
Ficou muito dos Da Weasel? Ficará para sempre?
Se ficará para sempre não sei. Sei que foi uma banda que marcou muito as gerações que viveram os anos da banda. Os Da Weasel nunca tiveram anos áureos porque nunca houve um declínio. Ficou uma boa memória dos Da Weasel. Eu não me posso chatear quando as pessoas me perguntam quando voltam os Da Weasel. Percebo que é uma saudade boa. Já eu olho para os Da Weasel e para o que vivemos como uma fotografia bonita. Fico muito feliz por ter feito parte de uma banda que marcou tantas pessoas.
O “Retratamento” trouxe a certeza de ter “nascido para isto, de estar tudo previsto”?
Eu senti uma série de coisas. A primeira foi medo. O momento em que vi crianças a cantar a nossa música foi assustador. Os Da Weasel e eu vínhamos de um background mais pesado e que não era passível de ser cantado por crianças. Sinceramente, não soube bem lidar com essa situação. Depois acabei por perceber que era altamente. E, hoje em dia, quando tenho uma música nova, mostro logo às minhas filhas.
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E ainda são muitas as letras dos Da Weasel que faria sentido ouvirmos hoje?
Existem coisas nas letras dos Da Weasel nas quais eu já não me revejo. É normal, os anos passam e as tuas ideias vão evoluindo. Mas continuo a rever-me em boa parte delas. Agora, gosto mais da pessoa que sou hoje e, por isso, não tenho aquela vontade de lá voltar. Eu estou fixe agora e é assim que quero estar.
Foi um carrossel com bilhete só de ida e uma eterna vontade de voltar sempre a Casa?
Eu tenho feito coisas tão diferentes. Mas a música é que é a casa. Depois dos Da Weasel ainda cheguei a pensar deixar de fazer música. A verdade é que continuei a fazer, a ter vários projetos e várias bandas. Isto até chegar ao primeiro disco. Não consigo deixar a música.
Aos quarenta percebe-se que “damos sempre a volta a tudo”?
Tentamos. Começamos a escolher melhor as nossas lutas e a gerir melhor o esforço. É isso que nos traz a idade. Sendo que, para mim, foi um choque chegar aos quarenta e perceber que não é de um dia para o outro que as coisas mudam e que os adultos me enganaram durante muitos anos. Enquanto criança, os adultos sempre me fizeram crer que tinham todas as respostas. Era mentira.
Já que a vida são dois dias, o que gostava de fazer no terceiro?
Neste momento já percebi que não vale a pena traçar planos a longo prazo. Dou por mim, de repente, a fazer coisas que julgava que nunca iria fazer. O terceiro dia vai ter sempre de passar por esta aprendizagem renovada que é estar a fazer discos com malta nova e a descobrir coisas que estavam adormecidas. Isto de estar sozinho é bom porque me permite trabalhar com muitas pessoas diferentes ao mesmo tempo e a tua música pode ir para sítios completamente distintos. Aquilo que eu vou fazer não vai sair muito da música. Podem é sair músicas muito diferentes. Eu também não sei fazer mais nada. E continuarão a ser o espelho da vida.
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